Iracema ou América?
Em Iracema, anagrama de América, podemos perceber a consciência social e cultural de Alencar diante do processo histórico de colonização da América, misturas de raças e culturas.
De acordo com Antônio Cândido (1981), o nacionalismo brasileiro ganhou maior relevância com a nossa independência política e com o Romantismo. A primeira desenvolveu um sentimento patriótico e a necessidade de uma literatura nacional, que contribuiria para mostrar a nossa capacidade e afirmar a nossa independência em relação a Portugal; a segunda se mostrou um aliado perfeito nessa conquista.
“Com efeito, a literatura foi considerada parcela dum esforço construtivo mais amplo, denotando o intuito de contribuir para a grandeza da nação. Manteve-se durante todo o Romantismo este senso de dever patriótico, que levava os escritores não apenas a cantar a sua terra, mas a considerar as suas obras como contribuição ao progresso. Construir uma “literatura nacional” é afã, quase divisa, proclamada nos documentos do tempo até se tornar enfadonha. (CÂNDIDO, 1981, p.10)
O nacionalismo literário foi de fato uma característica destacada no Romantismo, enfatizando a idealização da pátria, da natureza brasileira (da nossa fauna e flora), amor e saudade da pátria, enfim, há um profundo sentimento nacionalista.
Um dos temas que predominou na produção literária do nosso Romantismo foi o indianismo, tendo o índio como herói, valente e nobre, representante da nossa nação e símbolo da nossa liberdade.
A idealização extrema do índio e a valorização deste ser típico brasileiro foram muito bem trabalhadas por José de Alencar, que procurou expressar a realidade brasileira através de uma maneira muito particular de escrever, procurando refletir o espírito do nosso povo, seu vocabulário e sua maneira de falar.
“A forma reputada mais lídima de literatura nacional foi todavia, desde logo, o indianismo, [...] encontrou em Gonçalves Dias e José de Alencar representantes do mais alto quilate. As suas origens são óbvias: busca do específico brasileiro [...] além duma crescente utilização alegórica do aborígine na comemoração plástica e poética. Nas festas do Brasil joanino ele aparecia amplamente com este significado, representando o país com uma dignidade equiparável à das figuras mitológicas. O processo se intensifica a partir da Independência, pela adoção de nomes e atribuição de títulos indígenas; pela identificação do selvagem ao brio nacional e o seu aproveitamento plástico. [...] Segundo João Francisco Lisboa, um dos fatores do indianismo teria sido a natural reação contra os desmandos e violências do colonizador, por parte dos que estudavam o passado brasileiro”. (CÂNDIDO, 1981, p.18-19)
O legado de Alencar nos revela seu talento e seu ideal nacionalista, seu projeto literário consciente, sem falar na sua fecunda contribuição para a história literária e cultural do país. Em Iracema vemos a exaltação da natureza brasileira e da mitologia indígena, evidenciando as origens da nação brasileira, o cruzamento do branco com o índio, e o nascimento de Moacir, o primeiro brasileiro.
Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba;
Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros;
Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas. (ALENCAR, 1994, p.09).
O início do romance já evidencia o caráter poético da linguagem utilizada e trabalhada por Alencar: o vocabulário, o ritmo e a musicalidade da frase, as figuras de linguagem, as descrições que valorizam o exuberante cenário nacional e outros tantos recursos característicos da poesia, através dos quais o autor recria a paisagem exuberante e idealizada da natureza brasileira.
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte,
nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais
negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha
recendia no bosque como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil e nu, mal roçando alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas. (ALENCAR, 1994, p. 10)
A descrição da virgem corrobora a identificação dela com a natureza brasileira: lábios de mel, cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que o talhe da palmeira, sorriso mais doce que o favo da jati, hálito mais perfumado que a baunilha, mais rápida que a ema selvagem. Podemos perceber que a natureza serve de modelo e comparação para a caracterização da personagem.
Contudo é preciso destacar que Alencar, através do romance entre Iracema e Martin, tematizou simbolicamente o processo de colonização da nação brasileira. Iracema representa o contato entre o branco e o índio, simboliza o cruzamento do nativo e do europeu colonizador, mas Alencar romantiza esse processo de dominação do segundo pelo primeiro, como podemos perceber no trecho abaixo:
Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.
Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul
triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.
Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido.
De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais
d'alma que da ferida.
O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara.
A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada.
O guerreiro falou:
— Quebras comigo a flecha da paz?
— Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu?
— Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus.
— Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e à cabana de Araquém, pai de Iracema. (ALENCAR, 1994, p. 11)
Percebemos aqui o ato de quebrar a flecha representando um sinal de paz entre as duas raças, e também, o homem branco já conhecedor da cultura dos índios. Além disso, nota-se que Alencar descreve os personagens e também retrata um Brasil mais ideal do que real, mais como ele gostaria que fossem do que como de fato eram.
A valorização da natureza, sem dúvida, ganha destaque na obra, mas cabe destacar que o romance é considerado histórico-indianista, pois, além da valorização da natureza brasileira e do índio, há um argumento histórico, a colonização do Ceará, que se deu em 1606, onde estão presentes personagens históricos como Martim (Martim Soares Moreno) e Poti (Antônio Felipe Camarão).
Referências
ALENCAR, José de. Iracema. São Paulo: Scipione, 1994.
CÂNDIDO, A. Formação da Literatura Brasileira. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
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